Condescendência

Ela assusta a vizinhança usando máscaras horríveis, 
 grita obscenidades, impreca, desvaria, recebe mal 
as tentativas de aproximação (caridosas, condescendentes, 
tudo em nome da decência, da moral, da civilidade, 
da religião, dos bons costumes: 
“Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa”.
Hilda Hilst , em a Obscena Senhora D

Ela é mulher. Ela. Mulher. Acha que pode falar de política. Pior, acha que entende de política, que tem uma vivência política. Que sabe ela?
Ela fala de política e a gente ouve meio sem ouvir, porque, né, não pode ser machista, tem que fazer ela se sentir importante, inteligente, não que seja mesmo, porque ela discorda de mim e quem sabe disso sou eu, claro, um provedor no mundo,
Ela tem lá aquele talento de verificar informações que eu peço para ela usar, mas não digo que é pra fazer algo que ela é contra, porque acho ela fofa e não quero que me ache escroto por isso.

Ela saiu do trabalho. Ela, pobre, não se mata de trabalhar e passa dificuldades por isso, claro. Ela diz que está passando por problemas emocionais intensos que a impedem até de sair de casa, tem dia. Ela diz, mas que pobre tem direito a isso? Frescura, claro, mas não digo. Eu quero ajudar porque gosto dela, mas ela sempre foi a superiorasona da turma e agora tá assim, na merda, e eu, EU, que estou ajudando dessa vez. Vou arrumar algo pra ela fazer, não precisa nem pagar, porque ocupar a cabeça com trabalho é o mais importante para quem tá com a cabeça zoada assim. Claro que isso que ela vai fazer vai me livrar a cara de gastar uma nota, mas to fazendo isso porque ela tá precisando muito mais que eu.

Ela é da família, claro. Não que seja do mesmo sangue, mas é, né, tem um filho com alguém do meu sangue, então agora é família também, né. Ela é voluntariosa, mas nessa família não tem disso não, a gente é que impõe o ritmo. Ela fala das violências que diz ter sofrido, mas eu sei que nada justifica brigar com pai e mãe, a gente finge que tá tudo bem pra não contrariar, mas nessa família não é assim. Ela ganhava bem e desistiu do emprego depois que o filho nasceu, isso não existe, mulher tem que segurar a onda e sustentar, não importa como se sente, que história é essa? Mas a gente ajuda assim mesmo, né. Só nas decisões de família que não, claro que não participa, mesmo que seja sobre o filho dela, ele é do nosso sangue e ela não, quem manda aqui somos nós, né? Estamos pagando.


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