Quem tem medo da outra tribo

Não gosto das fronteiras. Elas limitam o acesso, impedem de conhecer coisas novas, demarcam posses imaginárias, separam pessoas. Existem as fronteiras externas, catalogadas, registradas em cartório, na cartografia. Mas existem também as fronteiras internas, que limitam o pensamento e a experiência.

Uma das maneiras mais usuais de limitar a experiência das pessoas é a separação por classe social. O que determina que as pessoas pertencem ou não a certo grupo é sua disponibilidade de capital. Quanto mais dinheiro se tem, mas inatingível aos outros deve ser o que se faz e o que se tem. Carros exclusivos, bolsas com série numerada, gadgets top de linha de todo tipo, áreas vip, festas vip e até rede social que exclua os menos endinheirados.

Quando falamos em atividades culturais, ou experiências sociais de cultura, por assim dizer, existe aquilo que a imprensa chama didaticamente de tribos urbanas. Supostamente são tribos como as primitivas, com rituais, indumentária, música, literatura, mitos, mística. Mas, na verdade, a coisa é bem menos complexa do que parece.

O que denomina uma tribo urbana geralmente é uma invenção de mercado, com toda moda a sua volta e comportamento determinado por publicitários. Não faltam exemplos disso. Os Beatles certamente são a primeira referência deste tipo de produto pop, mas caminhamos por uma extensa linha do tempo que passa por boy bands em várias décadas, grunge, clubber, até chegarmos nos indies, emos e coloris.

É claro que muitas dessas denominações começaram como contracultura e manifestação honesta de um grupo, mesmo que muitos outros tenham sido produzidos até na concepção musical, mas, no fim, tudo se torna uma afirmação não mais ideológica de um grupo, mas uma disputa do “meu é melhor que o seu", com grupos com barreiras invisíveis que não podem ser atravessadas pelo risco de se tornar um "mané". Isto pode até fazer sentido quando se é adolescente, quando é preciso afirmar o que se é, mas após esta fase isso não passa de mesquinharia sem sentido, porque autoafirmação é o mecanismo de quem não tem muita certeza do que é.

Ontem fui num festival hardcore e me chamou a atenção um colete customizado de um dos punks que passeavam no lugar. Era um colete preto, repleto de arrebites e escrito “rap brasileiro”, uma pessoa que não tem fronteiras (voltamos a elas).

Por que um punk não pode gostar de rap? Por que um indie não pode se divertir entre “os camisas pretas”? Por que os "regionais" não podem ouvir rock? Parece que certas “tribos” querem comprometimento integral de seus envolvidos, como seitas pós-modernas, que exigem a alma, numa afirmação constante das fronteiras culturais, que lembram bem o que leva países (que têm fronteiras físicas) a guerras.

Sempre fui pelo ecumenismo, pela interação, por poder experimentar qualquer coisa a qualquer tempo, desde que me agrade. Não poder viver assim deve ser absolutamente claustrofóbico.

Tenho pena de quem não se aventura a comer torresmo, pequi, sashimi, buchada de bode, feijoada, polenta, churrasco grego, yakissoba, mariscada, bolo de ameixa, doce de feijão... Ai, sua vida deve ter gosto de comida processada.

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