E mais um dia dos pais
Amanhã é dia dos pais. Mais um. Faz muitos anos que não comemoro, muitos mesmo. O meu pai faleceu faz uns oito anos, mas foi bem antes disso que essa data começou a passar em branco para mim.
Ando pensando muito nessas datas que comemoram a família. Ia dizer tradicional, mas isso tem sido subvertido em muitas situações. Ainda assim, não deixa de ter seu apelo de tradição, para celebrar a grandeza daquele "que provê", "que é o herói", "que está lá". E coloco tudo entre aspas, porque isso está bem longe do que tive.
Agora sou mãe e este ano foi o primeiro em que passei por essas datas todas nesta nova situação. Minha mãe sempre me disse que eu teria que ser uma também para entender como era tratar um filho, filha, eu, no caso. Isso era a deixa para legitimar a violência que eu sofria.
Violência foi algo com o que convivi cotidianamente por mais de vinte anos, ou seja, todo o tempo em que morei com a minha família. Isso fez de mim uma pessoa carente de aprovação, sempre com medo do desamparo.
Era para eu ter nascido homem, ouvi isso do meu pai desde que nasci. Sempre tinha uma mulher, vizinha, conhecida na rua, que falava com ele "mas só tem filha mulher, que pena" e ele olhava para mim e ria. Se eu fosse homem, teria o mesmo nome dele, seguido de junior ou filho, não sei bem qual seria a alternativa. Mas quem eu achava que era? Uma mulher, "você pensa que você é gente?", ele gostava de repetir sempre, para eu não esquecer.
Isso foi durante a infância. Na adolescência foram algumas as vezes em que eu fui obrigada a não sair de casa e proibida de ver meus amigos como castigo por coisa de um mês ou dois.
Mas pais tradicionais, conservadores são assim mesmo, alguém pode me dizer. O meu, no entanto, se dizia de esquerda. Era membro do diretório de um dos mais tradicionais partidos de esquerda do país. Partido, aliás, carregado de machismo na sua estrutura e entre seus membros, meu pai não fugia à regra. Não me tornei uma direitista por isso, só que este é um registro que precisa ser feito.
Eu sempre costumava dizer que a violência que sofri era apenas psicológica, mas lembrei de um dia, nesta época, em que ele tentava me dobrar, como gostava de dizer a minha mãe. Depois de algum tempo de humilhação sistêmica, ele bateu na minha cara várias vezes, dizendo que eu estava histérica, porque chorava. Eu não lembro da dor física, apenas da dor emocional daquele momento. Foi nessa época que o alcoolismo e a depressão me dominaram. Do álcool me livrei porque a depressão veio com uma gastrite nervosa e não conseguia mais nem comer, depois de um tempo, beber é que não rolava mesmo.
Eu queria ter feito nutrição numa escola técnica, tinha total condição de passar na prova para o ensino médio, mas meu pai nunca me deixaria ser uma cientista, me obrigou a ser professorinha (acho a profissão muito digna, mas era assim q meu pai via a coisa), ou pelo menos fazer o curso de magistério, caso contrário deveria parar de estudar. Minha mãe adorou e pagou a formatura, em que passou seu anel de esmeralda, que meu avô deu para ela na sua formatura, para mim. E no dia da colação eu pendia a joia da submissão no dedo. Joia que eu fiz questão de deixar num canto qualquer numa mudança para nunca mais ver na vida.
Neste tempo eu já trabalhava, numa loja que ele montou e que foi de minha responsabilidade por anos, sem registro, sem folgas ou férias. E não recebia salário ou coisa que o valha, porque já comia e dormia, ia querer dinheiro para quê.
Quando fiz dezoito, comecei a namorar e o namorado foi banido de casa. Com vinte, passei num concurso público e ele tentou me jogar na rua, depois de mais uma sessão de humilhação que me fez sentir que estava morta. Foi neste dia que a figura de pai sumiu para mim. Nunca mais falei com ele.
Olhando para trás, para as muitas coisas que vivi, percebo hoje quantas vezes suportei abusos em relacionamentos de todo o tipo esperando que dali uma ponta de carinho aparecesse, porque foi assim que me ensinaram que "o amor" é. O abuso, a violência, a falta de empatia comigo, são as marcas mais familiares (e digo de família mesmo) que tenho.
Hoje, mãe, confirmo o que sempre soube: não é possível achar natural tratar alguém vulnerável, que precisa do seu amparo, com violência. Não há o que justifique.
Este fim de semana será para comemorar o amor, porque o tempo do temor se foi.
Ando pensando muito nessas datas que comemoram a família. Ia dizer tradicional, mas isso tem sido subvertido em muitas situações. Ainda assim, não deixa de ter seu apelo de tradição, para celebrar a grandeza daquele "que provê", "que é o herói", "que está lá". E coloco tudo entre aspas, porque isso está bem longe do que tive.
Agora sou mãe e este ano foi o primeiro em que passei por essas datas todas nesta nova situação. Minha mãe sempre me disse que eu teria que ser uma também para entender como era tratar um filho, filha, eu, no caso. Isso era a deixa para legitimar a violência que eu sofria.
Violência foi algo com o que convivi cotidianamente por mais de vinte anos, ou seja, todo o tempo em que morei com a minha família. Isso fez de mim uma pessoa carente de aprovação, sempre com medo do desamparo.
Era para eu ter nascido homem, ouvi isso do meu pai desde que nasci. Sempre tinha uma mulher, vizinha, conhecida na rua, que falava com ele "mas só tem filha mulher, que pena" e ele olhava para mim e ria. Se eu fosse homem, teria o mesmo nome dele, seguido de junior ou filho, não sei bem qual seria a alternativa. Mas quem eu achava que era? Uma mulher, "você pensa que você é gente?", ele gostava de repetir sempre, para eu não esquecer.
Isso foi durante a infância. Na adolescência foram algumas as vezes em que eu fui obrigada a não sair de casa e proibida de ver meus amigos como castigo por coisa de um mês ou dois.
Mas pais tradicionais, conservadores são assim mesmo, alguém pode me dizer. O meu, no entanto, se dizia de esquerda. Era membro do diretório de um dos mais tradicionais partidos de esquerda do país. Partido, aliás, carregado de machismo na sua estrutura e entre seus membros, meu pai não fugia à regra. Não me tornei uma direitista por isso, só que este é um registro que precisa ser feito.
Eu sempre costumava dizer que a violência que sofri era apenas psicológica, mas lembrei de um dia, nesta época, em que ele tentava me dobrar, como gostava de dizer a minha mãe. Depois de algum tempo de humilhação sistêmica, ele bateu na minha cara várias vezes, dizendo que eu estava histérica, porque chorava. Eu não lembro da dor física, apenas da dor emocional daquele momento. Foi nessa época que o alcoolismo e a depressão me dominaram. Do álcool me livrei porque a depressão veio com uma gastrite nervosa e não conseguia mais nem comer, depois de um tempo, beber é que não rolava mesmo.
Eu queria ter feito nutrição numa escola técnica, tinha total condição de passar na prova para o ensino médio, mas meu pai nunca me deixaria ser uma cientista, me obrigou a ser professorinha (acho a profissão muito digna, mas era assim q meu pai via a coisa), ou pelo menos fazer o curso de magistério, caso contrário deveria parar de estudar. Minha mãe adorou e pagou a formatura, em que passou seu anel de esmeralda, que meu avô deu para ela na sua formatura, para mim. E no dia da colação eu pendia a joia da submissão no dedo. Joia que eu fiz questão de deixar num canto qualquer numa mudança para nunca mais ver na vida.
Neste tempo eu já trabalhava, numa loja que ele montou e que foi de minha responsabilidade por anos, sem registro, sem folgas ou férias. E não recebia salário ou coisa que o valha, porque já comia e dormia, ia querer dinheiro para quê.
Quando fiz dezoito, comecei a namorar e o namorado foi banido de casa. Com vinte, passei num concurso público e ele tentou me jogar na rua, depois de mais uma sessão de humilhação que me fez sentir que estava morta. Foi neste dia que a figura de pai sumiu para mim. Nunca mais falei com ele.
Olhando para trás, para as muitas coisas que vivi, percebo hoje quantas vezes suportei abusos em relacionamentos de todo o tipo esperando que dali uma ponta de carinho aparecesse, porque foi assim que me ensinaram que "o amor" é. O abuso, a violência, a falta de empatia comigo, são as marcas mais familiares (e digo de família mesmo) que tenho.
Hoje, mãe, confirmo o que sempre soube: não é possível achar natural tratar alguém vulnerável, que precisa do seu amparo, com violência. Não há o que justifique.
Este fim de semana será para comemorar o amor, porque o tempo do temor se foi.
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